A missão do reino de Deus (parte 3) O “Magnificat”
René Padilla
De todos os hinos que aparecem no Novo Testamento nenhum reflete com tanta precisão como o “Magnificat” (o cântico da virgem Maria em Lucas 1.46-55) as aspirações messiânicas do povo de Israel no tempo em que Jesus Cristo nasceu. São aspirações de libertação da opressão imperial a que esse povo esteve submetido ao longo de sua história e que nesse momento sofre sob o jugo de Roma representado na Palestina pelo rei Herodes, o Grande. Maria, uma humilde jovem virgem de Nazaré, provavelmente ainda adolescente, ouve o anúncio do anjo Gabriel (Lc 1.26-38). É um anúncio transcendental, segundo o qual ela ficará grávida e dará à luz um filho que será chamado de Jesus, em quem se cumprirão as profecias do Antigo Testamento a respeito do Messias: “O Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; e reinará eternamente na casa de Jacó, e o seu reino não terá fim” (v. 32a-33). Submissa, Maria acata a vontade de Deus (“Eis aqui a serva do Senhor; cumpra-se em mim segundo a tua palavra”, v. 38) e poucos dias depois empreende uma viagem à Judeia para visitar a sua parente Isabel, esposa do sacerdote Zacarias, em sua casa. É aí onde a bem-aventurada futura mãe expressa em um cântico que transborda em ecos do Antigo Testamento o que, a partir de sua perspectiva, significa o cumprimento do anúncio angelical não só para ela, mas também para seu povo e para toda a raça humana.
O “Magnificat” faz parte dos dois capítulos cujo conteúdo só aparece no terceiro Evangelho e que têm a ver com a infância de Jesus Cristo. Neste cântico aparecem vários dos temas que ocupam um lugar privilegiado na narração da vida de Jesus no “Evangelho dos pobres”, como é denominado o Evangelho de Lucas, “o médico amado”. O poema se divide em duas estrofes. A primeira estrofe (v. 46-50), da qual nos ocupamos neste artigo, tem foco em Maria e dá ênfase à ação de Deus como o Deus que cumpre seu propósito redentor em benefício de uma humilde serva. A segunda estrofe (v. 51-54), a que daremos atenção no próximo artigo, amplia o foco do pessoal ao corporativo e destaca a ação de Deus como o Deus que estabelece a justiça. Em todo o poema o sujeito da ação é Deus -- o Deus que ao longo da história utiliza seu poder para levar misericórdia e justiça aos pobres e que, como tal, é digno do louvor com que se inicia o cântico de Maria.
Para começar, Maria rende tributo ao Senhor como “Deus, meu Salvador” (v. 47), utilizando assim a linguagem que aparece em várias passagens do Antigo Testamento. Logo em seguida (v. 47-50), descreve a maneira como esse seu Deus leva a cabo a salvação. O que ela destaca é que em seu caso Deus “atentou na baixeza de sua serva” e usou seu poder para fazer “grandes coisas” por ela. A única explicação para que ela fosse escolhida para ser a mãe do Messias foi a misericórdia de Deus. Para esse fim Deus podia ter escolhido uma mulher da nobreza, uma filha de Herodes, o Grande, ou de Anás, ou de Caifás. Por sua misericórdia, no entanto, escolheu uma mulher (diríamos hoje) da classe trabalhadora; não de Jerusalém, a cidade do rei Davi, mas de uma pequena cidade galileia da qual Natanael diria posteriormente: “Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?” (Jo 1.46). A futura mãe de Jesus se sente devedora de Deus por sua misericórdia, e esse reconhecimento a leva a magnificar a Deus.
Maria se refere a si mesma como “humilde serva” e, como tal, a receptora da misericórdia de Deus. Reconhece que Deus usou seu poder (é “Poderoso”) para beneficiá-la. Ao mesmo tempo, sabe bem que ao longo da história (“de geração em geração”) essa misericórdia se estende por igual “aos que o temem”, ou seja, àqueles que não se orgulham do que são ou do que têm, mas que dão a Deus o lugar que lhe corresponde, especialmente os de humilde condição, como ela. Deus se deleita em exaltar os humildes: os pobres, os fracos, os excluídos, os marginalizados, os representados pela clássica tríade que aparece no Antigo Testamento múltiplas vezes: os órfãos, as viúvas, os estrangeiros. E esta é uma segunda causa para louvar a Deus.
Traduzido por Wagner Guimarães.
• C. René Padilla é fundador e presidente da Rede Miqueias, e membro-fundador da Fraternidade Teológica Latino-Americana e da Fundação Kairós. É autor de O Que É Missão Integral?.
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