Plenitude e sustentabilidade (Parte 1)
Marina Silva
Quando se fala em sustentabilidade, as referências são provenientes da questão ambiental. Sem dúvida, foi a preocupação ambiental que trouxe esse conceito para o cenário. Sua trajetória começou com o questionamento do modelo de desenvolvimento de alguns países e, depois da globalização, do próprio planeta. Uma tensão entre economia e ecologia, entre progresso e impedimento do progresso, entre avanço e retrocesso era o traço mais forte da percepção inicial sobre o assunto -- uma percepção equivocada, como se veria mais tarde.
Hoje algumas evidências nos fazem repensar essa percepção inicial. A nova percepção não é homogênea nem hegemônica, mas já é suficiente para nos conduzir a um patamar mais elevado de compreensão da realidade planetária. Não se trata de opor economia e ecologia. Muito menos de pensar em termos de progresso e impedimento deste. O desafio é mais complexo e mais nuançado. Trata-se de equacionar as coisas. Criar um novo jeito de perceber as relações naturais e sociais que nos cercam.
Economia e ecologia, discurso e prática, crenças e disposição para criar aquilo em que cremos, ética e política são pares de elementos que exigem uma integridade e uma coerência mais refinadas em nosso viver.
Em todas as oportunidades em que me convidam para falar, tenho repetido que a sustentabilidade não é uma nova maneira de fazer as coisas, mas uma maneira de ser. Só com essa maneira de ser plenamente assumida podemos renovar o nosso fazer, corrigir seu rumo, adequá-lo ao que nós como cidadãos cristãos temos confessado como forma correta de viver.
Nosso guia é a santa Palavra. Em Gênesis vejo, no primeiro capítulo, o relato da criação do mundo, seu funcionamento, seus valores, sua estética, sua ética, sua harmonia e as expectativas de Deus em relação ao ser humano como coautor na criação e na mordomia do mundo criado. A engenharia posta em funcionamento, o sistema de serviços entre os componentes do planeta, a reciprocidade desses serviços como princípio são aspectos ali presentes que nosso evangelismo tem, ao longo de séculos, na maioria das vezes, visto e não percebido, ouvido e não compreendido, numa espécie de completa falta de intimidade com o alcance e a profundidade dos ensinamentos da Palavra, como bem observou o Mestre de forma reservada aos seus discípulos (Lc 8.10).
Deus nos deu um planeta suficiente e satisfatório para todas as nossas necessidades. Ao lado disso, nos deu a capacidade de sermos criativos e agir sobre a criação. Esse é o sentido do convite para darmos nome e significado aos elementos da criação (Gn 2.19).
Dentro do princípio do serviço -- águas e solo servindo às plantas, à vida animal e à vida humana; frutas, demais plantas e ervas alimentando os animais e os seres humanos; ar, chuva e sol promovendo o desenvolvimento físico da vida está a ideia de plenitude de Deus. Todo o sistema ecológico do planeta estava organizado para servir à vida, à beleza e à harmonia. Plenitude. Sustentabilidade. Esse é o estado do mundo que Deus alega pertencer-lhe (Sl 50.12).
Olhando o planeta agora, a poluição das águas dos oceanos, rios e aquíferos, a poluição da atmosfera gerando aquecimento e chuvas ácidas; observando os solos contaminados, que deixam de ser propícios à eclosão das sementes, penso que temos usado nossa criatividade para espalhar destruição, e não para cuidar da vida. Tudo muito longe da esperança que Deus depositou em nós em relação ao amor por ele e por sua criação. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.
• Marina Silva é professora de história e ex-senadora pelo PV-AC.
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