O mito do nobre selvagem
Bráulia Ribeiro
Ouvimos que pelos menos dez índios Suruwahá cometeram suicídio. Morei nesta tribo e me dói pensar na dimensão de uma tragédia como esta para uma população de 120 pessoas. Equivale ao suicídio de 15 milhões de pessoas em um dia numa nação do tamanho do Brasil. Imagine a dor, o desespero, a perplexidade.
Suicídio é parte da cultura e do destino dos Suruwahá. Várias gerações conviveram com a prática, incapazes de ver uma alternativa. Cultuar uma prática perniciosa ao coletivo e ao próprio indivíduo não é privilégio só deles. Eles tratam o suicídio de forma semelhante a como tratamos aqui fora o uso do álcool ou das drogas -- o uso é glamourizado, mas todos sofrem com ele.
Na selva da “madi” Suruwahá o silêncio da noite é quebrado pelos gritos de desespero do jovem que comeu veneno. Ele tenta respirar, aflito. Durante o envenenamento os músculos relaxam e a respiração se torna impossível. A morte é lenta e dolorosa. Crianças, velhos, adultos convivem com o vazio deixado pelas mortes precoces, a dor da ausência desnecessária em todas as famílias, o medo do inexorável destino que espera todos no “Kunaha agi” (caminho do Timbó).
As evidências do suicídio como prática bastante anterior à presença missionária entre os indígenas não impediram que o governo tentasse nos jogar a culpa pelas mortes.
O antropólogo João Dal Poz explica o suicídio como parte necessária do universo cosmológico indígena. Ele nada vê de “desregramento ou disfunção” porque existe uma necessidade social subjacente que explica o suicídio. Na sua narrativa cínica, ele não é um problema, mas um exercício “individualizador”.
Curioso é que o artigo de Dal Poz1 tem o efeito contrário do pretendido. Ele se dá ao trabalho de documentar quantidade, causas e gênero atingido pelas mortes; por isto o artigo disseca e expõe o horror de uma sociedade autodestrutiva limitada a si mesma por políticas que deveriam protegê-la.
A estúpida escola relativista que dita tais políticas desumaniza culturas para justificá-las. Nesta visão, circuncisão feminina é um rito de passagem legítimo e necessário para reforçar a identidade étnica. Infanticídio é um direito da coletividade, uma forma de expressão da estratégia de estabilidade evolucionária. O suicídio dos Suruwahá é uma maneira de “singularizar o corpo social.”
O poeta Drysden inventou o termo “nobre selvagem” no poema “A conquista de Granada”. Alexander Pope escreveu outro poema romantizando o selvagem para uma geração que reagia ao ceticismo de Thomas Hobbes, o qual defendia que o homem sem lei seria propenso ao mal, bruto e incapaz de solidariedade. Rousseau também argumentou contra ele dizendo que o homem “em estado natural”, sem a influência castratadora da civilização ocidental, seria bom, puro, honesto, mais solidário. E assim foi estabelecido o conceito da verdade, beleza e bondade natural dos que andam nus pelas selvas.
A antropologia, depois de ter sido manchada pelo horror causado pelo darwinismo social, se volta para uma alternativa igualmente racista: o relativismo cultural absoluto. Ambas são visões míopes do ser humano e destroem culturas com a mesma crueldade. Infelizmente, estas ideologias ditam as políticas que norteiam nosso relacionamento com as minorias étnicas. O nobre selvagem só existe na cabeça de ideólogos loucos. A selva está cheia de sofrimento humano, bastante humano.
Nota
1. Crônica de uma morte anunciada. “Revista de Antropologia”, São Paulo, v. 43, n. 1, 2000.
• Bráulia Ribeiro trabalhou na Amazônia durante trinta anos. Hoje mora em Kailua-Kona com sua família e está envolvida em projetos de tradução da Bíblia nas ilhas do Pacífico. É autora de Chamado Radical.
braulia_ribeiro@yahoo.com
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