Marina Silva
No segundo turno das eleições presidenciais de 2010, encaminhei aos concorrentes José Serra e Dilma Roussef uma plataforma de políticas públicas que julgava ser o mínimo necessário para que o país tivesse um desenvolvimento economicamente justo, culturalmente diverso, politicamente democrático e ambientalmente sustentável. Pretendia que eles anunciassem compromissos públicos para conquistar os eleitores que votaram em mim no primeiro turno, pois considero que o voto não é propriedade de quem o recebe para que possa transferi-lo como se faz quando se vende uma propriedade. Mais que isso, queria que realmente o mandato de quem vencesse incorporasse aquelas políticas em benefício do país. Eu seria a primeira a reconhecer o mérito, dar apoio e contribuir para que cada um dos programas derivados dessas políticas fosse efetivamente realizado. A então candidata Dilma Roussef endereçou-me uma correspondência em resposta dizendo, entre outras coisas, que se fosse eleita não anistiaria desmatadores e não desprotegeria as áreas de proteção permanente, as APPs. Nessa categoria estão classificadas veredas, beiras de rio, encostas, topos de morro, áreas de nascentes, entorno de lagos e lagoas. Todos precisam de vegetação para que sua integridade seja preservada.
No final de maio, a opinião pública brasileira soube o que a agora presidente do Brasil fez com o Código Florestal e com a palavra empenhada. Embora a sociedade brasileira tenha se manifestado, em várias pesquisas, contra o projeto aprovado no Congresso e embora associações de cientistas tenham feito veementes alertas para a necessidade de um debate de qualidade sobre uma lei tão importante para nossa condição de potência ambiental, o resultado da ação da presidente foi lamentável. A base legal que tornou nosso país uma referência internacional em matéria de governança e proteção ambiental foi profundamente corroída.
A lei que define topograficamente as APPs é de 1986. Quem as desmatou nesse período cometeu crime e deveria pagar multa e recompor as matas. Os ruralistas fincaram o pé na data de 2008 e conseguiram mais de duas décadas de anistia. As APPs tiveram, com os vetos, várias exceções para sua proteção e redução do número das que não podem ter cultivo. Haverá impacto dessa nova lei na Amazônia, a responsável pelo regime de chuvas nas regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste do Brasil, as mais populosas e mais utilizadas para produção de alimentos e que serão as mais prejudicadas, pois, segundo pesquisadores, poderão transformar-se em deserto.
A visão imediatista do dinheiro pelo dinheiro e do poder pelo poder que sacrifica os recursos de milhares e milhares de anos pelo lucro de apenas algumas décadas há muito era admoestada por quem, como ninguém, sabia a importância das florestas para garantir estabilidade a qualquer povo: “Quando sitiares uma cidade por muitos dias, pelejando contra ela para a tomar, não destruirás o seu arvoredo, metendo nele o machado, porque dele poderás comer” (Dt 20.19).
O Conselho de Segurança Alimentar (CONSEA) declarou que áreas já utilizadas somadas às que estão em repouso podem suprir a necessidade alimentar do país sem investir sobre nenhuma área nova. Isso me remete a passagem de Eclesiastes 4.6: “Melhor é um punhado com tranquilidade do que ambas as mãos cheias com trabalho e vão desejo”.
Ao que tudo indica, a opção por encher as duas mãos no curto prazo, em benefício de poucos, nos condena a todos a muito trabalho e aflição de espírito.
• Marina Silva é professora de história e ex-senadora pelo PV-AC.
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